
Obituário da minha masculinidade I
Vi hoje escrito num braço de homem que segurava uma rosa: a masculinidade é uma prisão. Ouvi hoje uma canção escrita por um homem novo sobre a ferida ainda aberta que é ter sido abandonado pelo pai em criança. Li hoje sobre um caso, dois, cem casos de violência doméstica que continuam a fazer vítimas em Portugal – quem sofre diretamente as agressões, quem as testemunha e faz dessa vivência dor, trauma, modelo.
A forma como definimos e selámos o que é a masculinidade (valorizando-a e aos seus produtos) subjaz em larga medida à forma como o mundo está estruturado: o paradigma do crescimento económico, o sucesso, o poder, o território, a conquista. Mas muitos são os que sucumbem às exigências desse estatuto. E as perdas são enormes, para eles, para as pessoas à sua volta e para as sociedades como um todo.
A masculinidade foi-me entregue desde cedo como um formulário que eu não pedi. Apresentam-nos os requisitos e esperam que façamos um certo em todos eles à medida que vamos crescendo. Há alguns que se tornaram mais putativos com o tempo. Um homem já pode lavar a louça. Quando eu era pequeno e a minha avó paterna vinha passar uma semana connosco a Lisboa para ajudar nas lides domésticas e a cuidar da minha mãe, esperava-lhe sempre uma pilha de louça suja em casa – ao meu avô nunca lhe passaria pela cabeça lavar os tachos e as panelas que utilizava para comer de domingo a sexta. A mudança ocorre – é certo e ainda bem. Depois há os outros itens, aqueles que continuam centrais à ideia de masculinidade, do que é ser um homem e do que se espera daqueles seres humanos que nascem com um pénis. A não conformidade com essas fasquias dá direito a castigo. E digo fasquias de uma forma nada inocente, porque quando não se atinge, fica-se aquém. Não é um tiro ao lado, não é uma outra opção. É um não-conseguimento. Uma falha.
A primeira forma de castigo é a vergonha, mal vais crescendo e já sabes que está ali aquela norma a corresponder, aquele certo a escrever no formulário e já adivinhas que não vais corresponder mas ficas sempre a acreditar que amanhã, no próximo ano, quando fizeres 18 anos, aí sim vai ser diferente, porque é só uma fase e leste que há muitos outros jovens com as mesmas dúvidas, é só insegurança e não é, só fica cada vez mais claro, apesar de tentares esconder nas chuteiras do futebol, na intelectualidade ou nas piadas misóginas, tentas esconder para ti e para os outros mas às vezes não dá e os certos vão ficando por preencher e é cada vez mais óbvio e sentes-te a desmoronar à vista de todos e depois a vergonha já não é só tua, partilha-la com a tua família, especialmente com os elementos masculinos da tua família, e ninguém fala dela, a ver se passa, os sussurros são suprimidos, as dúvidas são engolidas, com sorte não tentam resolvê-lo à porrada, de qualquer maneira ela instala-se. E muitas vezes, anos depois, a vergonha ainda tem lugar à mesa. Já todos nos habituámos a ela, fica tão bem ali no canto, quase despercebida, quase translúcida, suficientemente presente para tapar o buraco do que se cala.
Mas chegas alguma vez a rasgar esse formulário? E, com isso, a enterrar a mão pesada do que se exige de ti, do que tu exiges de ti, até das condições impostas a seres amado, a seres desejado? Dificilmente. Ser bicha é uma luta diária pelo anulamento dessa inscrição que tu nunca quiseste: muitas vezes externa, sempre interna. Uma inscrição automática que te insere na (menos de) metade do mundo que governa, que te dá acesso à bancada superior, mas, como nos filmes da Máfia (ela própria, representante arquetípica desta masculinidade), que te julga violentamente pelo incumprimento. Esse julgamento não está só nos outros, nos olhos do teu pai, nos risos das tuas primas, nas bocas na rua ou nos bloqueios no Grindr – embora esteja, e muito. Está também em ti. No policiamento que fazes dos teus gestos, na dureza de como te censuras, nas fugas. Em como a intimidade te assusta. Em como temes que nunca vás estar à altura. A fasquia, de novo.
Livre é quem cuida e se envolve na linguagem profunda do mundo.