Entrevista: os direitos LGBTI no Dia Internacional Contra a Homofobia, Transfobia e Bifobia

Entrevista: os direitos LGBTI no Dia Internacional Contra a Homofobia, Transfobia e Bifobia


A Associação Mais Cidadania quer marcar o Dia Internacional Contra a Homofobia, Transfobia e Bifobia com uma entrevista à Catarina Ramalho para perceber mais sobre a realidade dos direitos LGBTI. A Catarina tem 24 anos, mora no Barreiro e estudou Ciências Políticas no ISCTE. Há 2 anos participou num Training Course em Itália sobre questões LGBTI através da AMC e está connosco para nos ajudar a perceber a realidade e os desafios LGBTI para o futuro.

Olá Catarina! Como é a vida e o dia a dia de uma pessoa homossexual em Portugal? Encontra mais dificuldades quando comparada a uma pessoa heterossexual?

Em Portugal tem havido evoluções fabulosas nos últimos anos – ainda ontem saíram as estatísticas europeias da ILGA Europe e Portugal está muito bem classificado comparado com outros países, mas continua a ser um país conservador, continua a ser um país que olha bastantes vezes para ti, para ver se estás de mão dada, com quem estás de mão dada…

Eu pessoalmente identifico-me como uma mulher lésbica, e por isso sinto duplamente esses olhares: para além da discriminação homofóbica que posso sentir todos os dias, por ser mulher também há a questão do assédio, da misoginia, e todo o sexismo associado. Por causa disso passei por um processo de identificação complicado, desde a minha infância e adolescência. As pessoas costumam perguntar “Como foi assumir para os teus pais, como foi assumir para a tua família?” e eu digo que nós não nos assumimos uma só vez, nós temos de nos assumir todos os dias. Todos os dias que acordamos eu tenho de me assumir para o mundo, e todos os dias que abro a porta de casa tenho de me assumir para a sociedade.

Dia 17 de maio celebra-se o Dia contra a Homobofia, Transfobia e Bifobia. Se eu te perguntar a realidade em relação a pessoas transexuais, a resposta vai ser um pouco menos otimista?

Sim, acho que com pessoas transexuais a legislação tem feito alguns avanços, mas também tem havido algumas complicações. As pessoas em geral continuam a ter muitos comentários de que é uma aberração, de que não é real, de que uma pessoa não se pode autodeterminar antes dos 16 anos porque ela não sabe o que quer… Eu, sendo uma pessoa cis [que se identifica com o mesmo género que lhe foi atribuído à nascença] falo com privilégio aqui, mas pelo que tenho contactado e observado, a vida de uma pessoa trans é efetivamente mais difícil, mais complicada, mais complexa, porque tem de lidar com muitas coisas associadas ao género que a sociedade portuguesa não está preparada, ou não quer estar preparada [para reconhecer].

Um dos grandes desafios das minorias é alcançarem uma representatividade que possa reivindicar os seus direitos em todas as esferas de participação – não só na política, mas como na cultura também. Como é que são os ícones LGBTI portugueses?

É complicado. Temos visto alguns atores políticos que são assumidamente homossexuais ou LGBTI, e tem havido pessoas que foram para a frente, como a Graça [Fonseca, atual ministra da cultura] que disse assumidamente que era uma questão política. Isto foi maravilhoso! Haver uma pessoa que diga diretamente “Não, a minha orientação é uma questão política, e estou a afirmá-lo como uma questão política” vai gerar esse debate na sociedade, e isso é que é preciso, porque se nós simplesmente não falarmos do assunto nem o expormos na sociedade nada será feito. Por mais comentários violentos que sofremos todos os dias, são barreiras culturais que temos de enfrentar, infelizmente.

Mas também temos outras figuras políticas ou culturais da nossa sociedade que eu continuo a sentir uma posição de muito privilégio, de poder, sem olhar realmente para as questões que existem. O Manuel Luís Gouxa é uma pessoa estável e presente na nossa cultura de TV há tantos anos, mas eu preciso que pessoas que estejam há tantos na TV que tenham um papel muito mais participativo na sociedade. Não podem simplesmente convidar uma pessoa de extrema direita para falar no seu programa porque têm de dar a voz a todos. Ou fazer piadas contra si próprias na televisão ao dizer que elas próprias são homofóbicas. Eu, Catarina, sinto necessidade de haver uma representatividade maior na nossa cultura de pessoas que vão para a frente contra esses obstáculos, que digam que não é correto, que nós existimos, que não queremos essas piadas!

Além disso, ainda não se vêm muitos empresários e empresárias LGBTI em Portugal. Há muita cultura de “é uma questão privada, eu tenho a minha posição de poder económico aqui e não posso desvendar algo sobre a minha vida”, o que eu acho que seria muito positivo. Acho que isso nos daria avanços incríveis.

Ultimamente tem havido um debate que a questão de ser homofóbico é uma questão de opinião, de liberdade de expressão. Porque é que achas que as pessoas têm tanta motivação para decidir sobre as liberdades pessoais das outras?

Tudo o que invade o seio do género e da sexualidade, tudo o que é devido à moralidade, são temas que as pessoas se adoram intrometer. Nós em Portugal somos ainda um país muito moralista, e isso dá aso a esse tipo de liberdade de expressão, com muitas aspas aqui, onde as pessoas acham que têm o direito de opinar sobre a vida dos outros só porque não corresponde aos seus padrões de moralidade. Essa palavra moralidade é muito questionável quando as pessoas acham que podem fazer comentários homofóbicos, racistas, transfóbicos, bifóbicos.

É sempre “eu posso”, “eu posso falar”, porque as coisas não lhes doem na pele, mas quando lhes doi na pele é completamente diferente. Eu tive casos de familiares muito homofóbicos que achavam que podiam dizer tudo o que lhes apetecia. No entanto, quando eu tive o momento de me assumir à minha família, as pessoas pararam de falar. “Ah e tal, a minha filha, afinal a minha neta, afinal a minha prima, sofre com isto… Coitadinha, não é?” Então aí as pessoas ficam com dó, mas quando não há esse sentimento de dó, esse sentimento pessoal, quando as pessoas não se conhecem, elas acham que podem opinar.

Esse limite ténue do que é liberdade de expressão, do que é opinião e do que é crime é uma coisa que não está nítida na nossa sociedade. Podia estar mais nítida na nossa lei e podia estar mais nítida nos nossos debates. Eu vejo isso em vários casos, como por exemplo nos comentários racistas: vários portugueses vão dizer que é só uma opinião. E quando não é, é crime?

Isso é bastante grave porque na nossa escola não temos uma educação voltada para a cidadania, e isso começa a partir daí. Nos debates que tive de cidadania até à faculdade ouvi pessoas a fazer comentários completamente absurdos, porque acham que têm esse direito. Seria muito útil se nós desde crianças fossemos habituados a ter debates cívicos e a estudar realmente o que é crime, o que é preconceito, o que é discriminação, e não simplesmente liberdade de expressão sem limites, como se isso pudesse alguma vez existir.

Como é que achas que as escolas se podem movimentar mais numa direção de educação para os direitos humanos tendo em conta que sempre que há algo que se desvia um pouco da educação mais tradicional levanta logo problemas com as esferas mais conservadoras da sociedade?

Isso é um ponto muito importante. O ano passado a rede ex aequo fez um workshop numa escola e os pais e os poderes conservadores em Portugal revoltaram-se porque era ideologia de género. Não queriam os filhos a receber essa informação porque os podia contagiar! Bizarro, esse tipo de comentários. O primeiro ponto é que é muita desinformação. Eu acho que o estado, enquanto promotor de educação, deve ter um papel mais definitivo aqui ao punir este tipo de agressões, porque isto é uma agressão, é uma forma de violência. Depois, deve de incentivar muito mais a educação, e eu não vejo isso a acontecer, porque a educação está estagnada há anos em relação a questões LGBT, coloniais, racistas.

Eu tive o meu primeiro contacto com a AMC num training course com toda uma abordagem de educação não formal relacionada a questões LGBTI e de género. Vi o tipo de atividades se podiam fazer com os jovens sobre direitos humanos e questões LGBTI e foi incrível, foi simplesmente um abre olhos para mim. A partir desse momento nunca mais vi a educação com os mesmos olhos! Ia para a faculdade meio revoltada com o que estava a acontecer porque tinha visto uma forma alternativa de ensino – porque não deixa de ser ensino e educação – que resulta muito melhor.

Portanto, eu acho essas iniciativas em grupo com workshops e educação não formal são muito mais produtivas que ter uma disciplina de formação cívica que de fato não servia para nada. Servia para os diretores de turma falarem sobre os problemas da turma. Acho que o estado devia ter aqui um papel mais importante de definir o que é ter uma disciplina de cidadania ou o que é ter uma disciplina de educação sexual que ainda não existe…. Existe uma educação sexual dividida transdisciplinarmente por vários disciplinas. Não é simplesmente ao sentar-me numa cadeira de sala de aula de ciências naturais que explica como a reprodução é feita entre dois seres humanos que eu vou entender a minha sexualidade de forma saudável. Não existe nenhum espaço onde haja realmente uma conversa aberta sobre estes temas.

Às vezes parece que o governo tem uma ideia X que vai para trás porque o setor da igreja e da democracia cristã está a impedir, e isso não deveria de acontecer. Nós estamos num estado laico e o estado deveria de propor aos seus cidadãos e aos seus jovens entenderem mais sobre si próprios e sobre o seu corpo, porque a questão de género não é só sobre a forma como eu me visto ou a forma como eu me expresso gestualmente. Questões de género englobam tudo o que é teu e toda a tua identidade, é muito mais além que simplesmente pensar em sexo. Acho que o estado deve ter um papel muito mais definitivo nesta questão.

Em termos legais vês algum avanço ou reivindicação que falta ser cumprido pelo movimento LGBTI?

Em primeira vista penso logo na questão da autodeterminação do género, já que o primeiro projeto de lei que foi para a frente não foi aprovado. Ele permitia que a autodeterminação de género fosse a partir dos 16 anos, ou que não tivesse qualquer limite de idade, e isso seria incrível. Existe essa questão da moralidade que a criança até aos seus 18 anos não sabe nada da sua vida, mas está cientificamente provado que a própria identidade de género já se começa a demonstrar a partir dos 3 anos.

Até mesmo as pessoas que têm noção do seu preconceito perante as questões de género e orientação sexual têm por vezes dificuldade em agir ativamente na defesa dos direitos LGBTI. Que conselhos é que lhes dás?

Entendo que haja alguma dificuldade, até porque se um homem cis heterossexual quer dar a sua palavra pelo movimento poderá ser visto por muitos como alvo de bullying “Ah, tu também és gay” ou “pensas que és bi, mas a bissexualidade não existe”. Então, entendo que possa ser um papel difícil, conturbado, mas… É um dever. Acho que todos nós devemos de olhar um pouco para o outro e perceber que a nossa situação não é a mesma, tentarmo-nos colocar nos pés dele e entender o que se está a passar. Acho que essa é a parte fundamental aqui. Eu tive algumas conversas com amigas e conhecidos meus, heterossexuais, que mostraram interesse de falar sobre questões de género, e perguntaram-me se as podia ajudar. Claro que sim! Basta perguntar, pesquisar, e todos nós conseguimos chegar a um nível de conversação sobre o assunto. A pessoa tem esse dever, de pesquisar mais, de se interessar mais, e de olhar para o lugar do outro. Essa é a parte fundamental.