Discurso sobre o discurso

Discurso sobre o discurso


17 de maio de 2010, pouco depois das 20 horas.

O então Presidente da República, Cavaco Silva, dirige-se ao país, via telejornais, para partilhar o seu parecer sobre a lei que fora aprovada no Parlamento a 8 de janeiro desse ano (posteriormente, a 11 de fevereiro na especialidade). A lei alargava a figura do casamento civil a todos os casais, independentemente do sexo (claro, dentro do binómio feminino/masculino, que era e ainda é o enquadramento oficial inescapável do Estado). Dado o conservadorismo de Cavaco Silva, antevia-se a possibilidade de veto.

“Boa noite. A Assembleia da República aprovou no passado mês de fevereiro uma lei que permite o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo. É de lamentar – pausa que dava a entender, não ingenuamente, que a frase tinha terminado – que não tenha havido vontade política para alcançar um consenso partidário alargado sobre matéria de tão grande melindre, de modo a evitar clivagens desnecessárias na sociedade portuguesa”.

Assim começou o seu discurso.

Nos seis minutos seguintes, Cavaco discorreu sobre o processo político de discussão e aprovação da lei, queixando-se da postura extremista dos partidos de esquerda. De forma desonesta, disse-se convicto de que, caso estes partidos o tivessem querido, poderia ter havido um consenso parlamentar sobre o assunto. Claro que esse consenso seria necessariamente para menos igualdade e nunca (isso sabia-o tão bem quanto todos nós) para um desenlace semelhante.

Continua, dando exemplos de países onde foi encontrada, segundo ele, uma solução perfeita: a garantia de iguais direitos e regalias para casais homossexuais sem que lhes seja aplicado o nome casamento, mantendo o epíteto tradicional apenas para “a união entre um homem e uma mulher”. Irónico que, nove anos depois, todos os países que tenha referido e apresentado como exemplos tenham já aprovado a mesma lei que ele, tão a contragosto, promulgou. Reino Unido, França, Dinamarca, Alemanha. Portugal antecipou-se a todos estes países avançados. Que moderno, senhor Cavaco!

Cavaco escolheu promulgar a lei. Num passe destro (duplo sentido), conseguiu opor os milhões de portugueses que, nesse ano de 2010, começavam a sentir os efeitos duma crise económica ingente aos políticos e ativistas que tinham trabalhado para corrigir esta discriminação na lei portuguesa – discriminação legislativa que (entre tantas outras) representava uma discriminação história, brutalmente repressiva e opressora. Fê-lo dando a entender no seu estilo insosso, mas insidioso, que o tempo despendido nesta matéria fora tempo perdido, que deveria ter sido gasto a encontrar uma solução para a tragédia económica iminente. Que a sociedade portuguesa estava demasiado agastada para aguentar esta clivagem moral e que os efeitos sociais nefastos que daí adviriam seriam da responsabilidade dos partidos de esquerda. Montou o circo todo para servir as suas “convicções pessoais”. Mas o palhaço foi ele. Anacrónico, com falta de visão e, sobretudo, com uma falta de empatia e sentido de Estado gigantes para com as pessoas que beneficiariam desta mudança na lei. As únicas a quem ela dizia respeito. Aquelas que ao longo dos anos, dos séculos passados, e muito graças à Igreja da qual o senhor Cavaco é tão devoto frequentador, foram vítimas de violência e preconceito a um ponto em que se anularam. Milhões de pessoas, só em Portugal, que se anularam.

Para elas, quantas palavras de apoio? Para elas, que serão entre 5 e 10% da população portuguesa (à volta do mesmo número de pessoas que habita no distrito de Braga), quantas palavras de reconhecimento pela discriminação histórica, de encorajamento pela nova visibilidade? Zero. Não lhe perdoarei nunca o sabor amargo que me deixou na boca depois deste discurso, apesar da felicidade pela nova lei, finalmente promulgada, real. Para um miúdo que cresceu a acreditar que morrer de sida aos vinte e poucos era o desfecho inevitável, foi como ter o maior presente de Natal embrulhado debaixo da árvore: uma alegria e expectativa imensas.

Quanto ao Cavaco… é como com alguns pais. A certa altura, deixa-se de crer que alguma vez dirão ou farão aquilo que achámos um dia que era da sua responsabilidade dizer ou fazer.

Já não o espero de nenhum político na sua posição. Mas não deixarei de exigi-lo.