
Custos
Nunca falamos disso.
E mesmo agora, que me decidi a escrever um texto sobre isso, apodera-se do meu génio um torpor sem nome; e custa-me fazê-lo.
Não quero voltar a esse tempo. Um tempo de vulnerabilidade extrema, cada dia a gerir o perigo e a exposição, cada noite a contar os estragos. Absolutamente sozinho. Na aparelhagem, uma mulher zangada a cantar.
Volto a esse tempo porque estas histórias ficam por contar. A minha ficou. Bem embrulhada em panos de vergonha e, por laço, o remate perfeito: a vergonha de ter vergonha; a admissão da culpa; a legitimação do castigo. Receita infalível para uma história que se arruma no gavetão debaixo da cama e cuja memória vamos ativamente enfraquecendo à medida que conhecemos outros meios, outras pessoas, que vamos saindo dos armários, descobrindo o prazer e o amor e acreditando que esse passado não nos define nem condiciona. Comigo, é mentira.
As agressões verbais e físicas que sofri durante a minha infância e adolescência por ser efeminado plantaram em mim bem fundo a semente do medo. E o medo… eram tantos: o medo de ser destacado e apontado como o anormal; o medo de ver confirmado no riso dos outros o medo de eu ser, efetivamente, anormal; o medo de ler nos olhos das minhas amigas o medo de se aproximarem, de me defenderem, de não me compreenderem; o medo de que as sequelas dessas agressões fossem visíveis e me obrigassem a contar a algum adulto, a proferir a palavra proibida, assustadora; o medo de nunca mais ser gostado, de me ver colado à pele um fedor sub-humano; o medo de ser fraco demais para aguentar aquele terror, por mais que fugisse. E eu fugia. Fingia estar doente para não ir à escola, aquecendo o termómetro na lâmpada da mesa de cabeceira, como tinha aprendido no “E.T.”; deixava de sair de casa para me encontrar com amigas porque via os agressores sentados no banco da rua, em galhofa, e sabia que, mal saísse do prédio, começariam os comentários jocosos, as aproximações ameaçadoras, as zombeteiras propostas sexuais; controlava rigorosamente os caminhos que fazia dentro da escola, deixando de comer ou de ir à casa de banho, consoante as horas, por saber que este ou aquele agressor (porque eram vários, em vários grupos) estariam na cantina ou naquele corredor ou naquele campo; e se, por acaso, regressava da escola e via que estavam no banco da rua os agressores que moravam na minha praceta, ficava horas a dar voltas ao bairro, sozinho, tentando passar despercebido, e olhando de longe para ver se ainda lá estavam, de cada vez que dava a volta e
passava pelo início.
E nunca, nunca consegui fazer-lhes frente.
Para além do medo, que ainda hoje giro internamente, esta profunda convicção da minha própria fraqueza e pusilanimidade. E crer, durante tantos anos, que o mundo não era feito para mim e que não havia espaço nele para pessoas como eu. E então, elas morriam. De porrada ou de sida, dava igual. A marca da bichice era como o xis nas casas durante as epidemias de peste.
Não havia nada a fazer nem a quem recorrer. Era aguentar o melhor que pudesse. E ter boas notas.
A experiência da fatalidade de uma forma tão aguda na vida de uma criança é dramática. Eu vivi mais do que a que me cabia. E anos depois, de armário totalmente escancarado, passeio na rua, à noite, com um amigo. Um
carro passa e ouvimos alguém gritar de dentro “paneleiros!”. O mesmo frio na barriga, o alarme soou, o coração retesou-se, os olhos felinamente à procura de um esconderijo, o corpo lembra-se da fuga; e da sobrevivência. O sabor do medo na boca; e da culpa.
Nessas noites, custa a adormecer.