Valentes

Valentes


Ainda me lembro do João Valente. O João era meu colega no externato onde fiz o ensino primário, nos subúrbios de Lisboa. Era mais velho que eu, não frequentávamos a mesma sala de aulas. Era mais alto que eu, tinha umas mãos maiores do que as minhas. E, nos intervalos, brincava com bonecas. Foi isso que nos juntou. De vez em quando, eu brincava com ele e as bonecas dele numa mesa da cantina. Assustado, porque sabia que era censurável, mas algo tranquilizado porque as bonecas não eram minhas. Eu estava só a experimentar.

Sei que os pais do João Valente foram chamados à escola para que lhes fosse apresentada a situação e debatidas estratégias de ação. Suponho que já saberiam que o João brincava com bonecas, uma vez que as trazia na mochila. E se brincava com elas na escola, à mercê da chacota das outras crianças, calculo que o fizesse também em casa. Não conheci o desfecho dessa reunião. O João só encolheu os ombros e continuou a brincar com as suas bonecas até terminar a quarta classe. Continuou a ser a mesma criança-bicha. Como eu era. Os meus pais também tinham sido chamados à pré-primária onde andara porque, no aparente regime de separação de género que era o recreio, me recusava a brincar com os meninos e queria antes ficar com as raparigas. Mas isto eu só soube já adulto.

O João Valente continuou a ser uma referência para mim, enquanto crescia. Nunca mais o vi. Por muito tempo, achei que ele era a única criança como eu no mundo inteiro. E que sorte, termos ido parar à mesma escola! O que era esse “como eu”, eu não sabia. Não entendia a estranheza que sentia quando abraçava a minha namoradinha da primária, a Marta, que era a melhor jogadora de futebol da escola, sempre com as nódoas negras que eu não tinha – os livros eram mais meigos. Não entendia a estranheza pelo mundo que me empurrava para longe das outras pessoas, para os livros, sim, e para as formigas e os grilos da fazenda do meu avô Manel. Não entendia a violência mas sabia que era esperado que eu fosse violento.

E quando deixei de ver o João Valente, achei que tinha perdido a chave para entender isto tudo. Para experimentar uma vivência alternativa, sob o jugo das educadoras (que não diziam nada mas não conseguiam evitar uns olhares confusos e reprovadores) e malgrado o escárnio de uma ou outra criança (até as meninas preferiam brincar com bonecas numa mesa diferente, embora olhassem para nós o tempo todo com convite nos olhos). Mas uma vivência nossa, controlada por nós, com o frémito do que é proibido e verdadeiro. Uma identidade transgressora, ainda sem nome nem corpo, representada por duas bonecas a fazer de mulheres brancas e louras, com cinturas ridiculamente finas. O nosso primeiro ato revolucionário.

Mas vivi esta perda de modo desafetado. Tinha os livros, tinha os animais e as tardes de sábado a fazer pão com a avó Mina. E a maior perfídia do terrorismo de género a que estávamos sujeitos, o João Valente e eu, a que estamos todes, foi fazer como que eu sentisse mais alívio que pena. Com que quisesse ser aquele que joga fácil, sem ter capacidade de compreender (quanto mais, topar) a luta. Não voltar a ver o João Valente e as suas bonecas talvez resultasse, talvez pudesse ainda vir a ser uma criança normal.

Não cheguei a ser uma criança normal. E, apesar de toda a violência que sofri nos anos vindouros e daquela que me impus, ainda bem que não me tornei numa criança normal.

A existência de crianças como eu e o João Valente não ameaça ninguém, não prova nada, não desafia a sociedade, não fere suscetibilidades. Nós existimos e resistimos. As bichas que fomos/somos sobreviveram a um sistema ameaçado, desafiado, provocado e que ripostou violentamente.

E quem ganha com isso?